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O Azul, o Cinza e o Morcego

O Azul, o Cinza e o Morcego

Em 1861, os Estados Unidos da América mergulharam em uma sangrenta guerra civil que fez mais de seiscentos mil mortos.
Naquele ano, os estados sulistas – retrógrados e escravagistas – rebelaram-se contra a União e iniciaram uma empreitada para se separar do resto do país.
Abrahan Lincoln, presidente dos EUA na época, se opôs duramente aos rebeldes e liderou os aliados nortistas – democratas e industrializados – na luta para manter a nação coesa.
Esse conflito, que duraria quatro violentos anos, tornou-se mundialmente conhecido como A Guerra da Secessão.

Essa foi a introdução de uma das famosas edições especiais de luxo que a Editora Abril dedicou ao Batman em 1993, mais um exemplar da série Túnel do Tempo, tradução local para os Elsewolrds da DC Comics. Em formato americano, com a figura do Homem-Morcego carregando um chicote nas mãos, pistolas na cintura, montado em um cavalo negro contra um fundo branco, a revista levou o nome de A Guerra da Secessão, uma adaptação do original, publicado nos EUA no ano anterior, The Blue, the Grey and The Bat, título que fazia referência às cores dos uniformes dos soldados envolvidos naquele conflito – azul para os nortistas da União, cinza para os confederados do Sul.

O ano em questão é 1863, um período delicado da Guerra Civil. Os primeiros quadrinhos abrem com cenas da cidade de Washington, obras inacabadas do que um dia viria a ser o Capitólio e um preocupado e amargurado presidente Abrahan Lincoln na sede do poder executivo, a Casa Branca. O texto faz uma análise pessimista da situação para o Norte, dando conta de que são os homens do Sul que contam com os melhores oficiais naquele momento. A vantagem da União reside no número de soldados e na riqueza de suas terras. Mas uma descoberta feita por um garimpeiro de má fama, chamado Henry T. P. Comstock, no território de Nevada, pode pôr fim ao equilíbrio de forças: um depósito de ouro e prata de dimensões e qualidade que mal podem ser imaginadas.

Apesar de nominalmente o controle da região estar com o Norte, aquele terreno representa uma encruzilhada de forças. Cercado por tribos de índios hostis, por mexicanos que pretendem recuperar terras perdidas para o vizinho duas décadas atrás, por mercenários atrás de riqueza fácil, além de agentes da Confederação separatistas infiltrados entre esses grupos, aquela fortuna em minério pode significar o futuro de um país. A vitória ou a derrota de um projeto de nação simbolizado pelos sonhos abolicionistas de Lincoln, um presidente que não conta com nenhuma companhia de infantaria para mandar àquela terra sem lei e tomar posse de fato das tais minas.

Esta é a história de como Abrahan Lincoln enviou um Homem-Morcego para assegurar a maior fonte de riqueza encontrada por esta geração para as forças da União e de como, no auge do mais agudo conflito da história dos Estados Unidos, um novo estado se ergue do nada.”

O Homem-Morcego em questão é, como não poderia deixar de ser, o Tenente-Coronel Bruce Wayne, da Décima-Terceira cavalaria de Massachusetts. Ao contrário da maioria de suas contrapartes na versão oficial ou nos Batmen de mundos paralelos como este, O protagonista de The Blue, the Grey and The Bat aparentemente não tem uma história trágica, como o assassinato dos pais a servir como gatilho para sua obsessão. O oficial nortista apenas diz que escolheu se fantasiar para manter a identidade em sigilo, como foi determinado por seu presidente. A escolha do seu avatar animal se deu simplesmente porque um morcego voou por sua janela na noite em que o mensageiro de Lincoln o procurou para convocá-lo para a missão: ir a Nevada, encontrar-se com um misterioso homem identificado apenas por uma inicial, “A gente H”, e recuperar os milhões em ouro e prata, destinados aos esforços de guerra, que desapareceram.

Mesmo que sem a carga dramática que caracteriza o personagem, este Batman tem algumas outras semelhanças com o original. Sua identidade pública é a de um janota, falastrão, mulherengo e um tanto desastrado, servido por um criado de nome Alfred, que o ajuda a pegar uma carruagem em St. Joseph que deve levá-lo até Virginia City. Wayne segue viagem acompanhado da jovem, linda e loira Margaret Barensaver e de sua tutora, velha e rabugenta Mary Louise Pilchard. A oportunidade para ele exercitar seus dotes de conquistador são interrompidas por uma presença que assusta a matrona: do lado de fora cavalga um garoto índio, com pinturas de guerra em volta dos olhos, rifle na mão e conduzindo dois cavalos velozes.

Trata-se da versão Elseworld da vez de Robin, o garoto-prodígio, transmutado em um similar de Tonto, o ajudante do Cavaleiro Solitário. Uma brincadeira com a incial que o identifica se perdeu com a tradução. Ele seria o Agent R, de Red Bird, mas que poderia ser confundido com nome do alter ego original. Como a tradução optou por um literal Pássaro Vermelho no lugar de tentarem algum nome com R no início, ele virou Agente P no Brasil. Este Robin tem o passado trágico que faltou a seu parceiro, mestiço de branco com indígena, o garoto diz não tirar a pintura de guerra enquanto não encontrar e se vingar do homem que o transformou em órfão. Quando tinha sete anos, um soldado matou seu pai e arrancou o escalpo loiro de sua mãe na sua frente. Ele só se salvou porque a irmã do pai enfiou um pano na boca e o manteve escondido em um cobertor, enquanto Pássaro Vermelho assistia ao morticínio.

No meio de um ataque de ladrões de diligências, liderados por Robert Arnold “Bloody Bob” Armstrong – um bandido que se veste com o uniforme dos separatistas –, a Dupla Dinâmica do Oeste se reúne. E não apenas Batman e Robin, vemos ainda a contraparte do Batmóvel: o garanhão negro da capa, com arreios, sela e outros paramentos com emblema de morcego, Agente A, ou Apocalypse. Montado na versão em negativo de Silver, e agora portando o capuz de Batman, Wayne salva as donzelas em perigo dando mostras de sua pontaria inacreditável que, num clichê do pulp comportado, o permite acertar as pistolas dos adversários, desarmando-os sem derramamento de sangue. Se o Cavaleiro das Trevas oficial não porta armas de fogo, este até maneja os revólveres que carrega no coldre duplo da cintura, mas mantém o código de ética que o impede de matar e garante que o gibi seja vendido livremente para menores. Pelo menos na maioria das vezes.

Finalmente em Virginia, novamente com sua identidade militar de Tenente-Coronel da União, Bruce Wayne começa a fazer seus contatos. A primeira parada é no jornal local Territorial Enterprise, onde ele encontra o repórter, gráfico, entregador e piloto de vassoura em meio período, Sam L. Clemens. Sim, ele mesmo, figurinha fácil nas obras steampunk focadas no Oeste americano, o escritor que se tornou célebre com o pseudônimo Mark Twain. Em poucos quadros e balões, o jornalista e ainda futuro ficcionista desmotiva Wayne de sua intenção de alistar um regimento entre os cowboys da cidade. “Está numa missão estúpida, ainda não sabe? Não há um homem ou família por aqui interessado em enfiar o nariz nessa escaramuça do Leste”, ele comenta antes de dar o exemplo de sua própria biografia. “Eu fui soldado confederado por duas semanas antes de perceber que não era minha luta. As pessoas não vêm a Nevada por ouro ou aventura, soldado… elas vêm pela prata.”

Mesmo com este aviso, o oficial resolve tentar a sorte no saloon da cidade e convocar homens para o exército da União. Como previu Mark Twain, a proposta não só é mal recebida, como ainda serve de pretesto para uma clássica briga de bar. A confusão aumenta ainda mais quando surgem no local as companheiras de viagem de Bruce Wayne, que encabeçando uma tropa de mulheres portando cartazes com dizeres do tipo “Seus filhos sabem onde está o pai deles?” e “Abaixo o rum do demônio” se proclamam o Conselho Feminino de Temperança de Virginia City. Em meio ao caos generalizado, socos, gritos e vidros quebrados, Wayne faz contato com o Agente H, pessoa da confiança de Lincoln: James Butler Hickok, o famoso Wild Bill.

É Hickok quem leva o bem intencionado mas inexperiente Wayne, de quem ele conhece a identidade mascarada, ao encontro de sua verdadeira milícia. Escondidos em um estábulos esperavam homens que, ao contrário dos cowboys locais, tinham interesse real no sucesso da missão dos agentes de Abrahan Lincoln. Nas palavras de Wild Bill: “Eles trabalham nas minas de prata. Cozinham ou fazem faxina na cidade. Cuidam de ranchos. Escravos foragidos, todos eles.” Aqui, outro trocadilho que fica melhor no original, o exército de homens negros é chamado pelo Agente H e pelo Agente R de Dark Knights, uma alusão a um dos apelidos mais famosos de Batman. Cavaleiros das Trevas é a tradução que ficou consagrada no país desde a famosa minissérie de Frank Miller (aliás, que pode ser considerada a primeira e mais célebre aventura Elseworld do personagem, o retratando em um futuro possível, aos 50 anos), mas perde um tanto na referência a cor da pele escura, dark, daqueles homens.

Com seus parceiros arregimentados, contando com a cobertura jornalística favorável do Territorial Enterprise Batman pode dar início a sua cruzada, atacando os ladrões, piratas, mercenários, traficantes de escravos e confederados, com o objetivo de revelar a conspiração que rouba os minérios de Nevada e ameaçam os interesses da União. Como não poderia deixar de ser, e tal como previsto naquela primeira conversa entre Wayne e Lincoln, reviravoltas do roteiro e a ação das diversas forças antagônicas naquele território semisselvagem levam o protagonista mascarado a realizar feitos espetaculares. Flechas indígenas, tiroteios em vagões de trem, disparo de um canhão, carroças explodindo, exércitos se enfrentando na paisagem panorâmica do Oeste americano. Tudo na melhor tradição das histórias de heróis do faroeste, como o já citado Cavaleiro Solitário – há até uma citação explícita, quando em um momento de despedida, Wild Bill solta um velho jargão das aventuras daquele personagem ao perguntar “Quem é esse mascarado?”

O que fica ao fim da história criada em parceria por Elliot S. Maggin e Alan Weiss, com arte-final de José Luis Garcia-Lopez, é a certeza de que a criação de Bob Kane, com suas características atemporais, é um dos personagens mais maleáveis para experimentos da série Elseworlds. Batman casa tão bem no seu cenário comum da Gotham City nossa contemporânea quanto em ambientações próprias do West Steampunk, como a vista em The Blue, the Grey and The Bat. O maior problema da aventura são suas poucas páginas. O potencial seria para um álbum maior que o de 68 páginas que chegou às bancas, ou mesmo para uma minissérie em dois ou três capítulos. Como tantas outras versões alternativas do Cruzado de Capa, este seu gêmeo cowboy poderia ter rendido mais, indo além do cenário da Guerra da Secessão.

Por Romeu Martins

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One Response to “O Azul, o Cinza e o Morcego”

  1. Mr.Hacesnof says:

    Eu tenho essa revista em português! Do caralho!!!

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