Steampunk no cinema – La Cité des enfants perdus
La Cité des enfants perdus
Em 1991, a criativa dupla Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro apresentaram aos espectadores o pesadelo de sua visão de um mundo pós-apocaliptico onde trogloditas habitam os subterrâneos e um açougueiro depende literalmente de seus inquilinos para manter sua geladeira cheia de carne. Delicatessen, uma bizarra comédia de humor negro, se tornou cult… certamente não é para o gosto de todos, mas aqueles que provam, adoram. Quatro anos após Delicatessen, Jeunet e Caro retornam com La Cité des enfants perdus (A cidade das crianças perdidas) tão impressionante e excêntrico quanto seu predecessor.
Essa colaboração dos diretores Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro faz surgir um forte, ainda que lento de raciocínio, homem de circo, uma ladra de nove anos (com mais presença de cena que muitas atrizes com o dobro da idade), um maligno ‘par’ de gêmeas siamesas que regem a escola de ladrões infantis (sombras de Oliver Twist talvez, mas Fagin nunca foi assim tão sinistro), um cérebro em um tanque, uma turba de clones, um culto de fanáticos ciclópicos, e um velho rabugento que nunca sonha, e que para consegui-los, os rouba das crianças que rapta para manter sua sanidade e juventude. Ah, e não vamos nos esquecer das pulgas assassinas treinadas controladas por um realejo.
Não é um filme típico, não é confuso ou difícil de se acompanhar, mas também não te atinge na cabeça com o enredo explicadinho. Ele mostra a história. Não espere cenas de final de episódio do Scooby Doo onde cada detalhe do filme é revisado, é um filme extremamente visual, e as respostas vem (dãã) visualmente. E que visual incrível; as cenas são iluminadas com o débil brilho do pôr-do-sol e a luz dourada retro-industrial de uma Europa fantasiosa, com aparelhos tecnológicos análogos e não computadorizados de uma especulação do futuro a partir do século XIX.
Lançado (ainda que na surdina) no Brasil sob o sofrível título Ladrão de Sonhos, o filme La Cité des enfants perdus relaciona sonhos a criatividade, juventude, e maravilhas. A capacidade de escapar o mundo racional pela imaginação alimenta não apenas o desejo de continuar vivendo, mas a necessidade de fazer algo com sua vida. No filme, somos apresentados ao brilhante, ainda que desequilibrado, cientista Krank (Daniel Emilfork), que está envelhecendo prematuramente por não poder sonhar. Em um esforço para continuar vivo, Krank começa a raptar crianças para roubar seus sonhos.
Para por em prática o plano, Krank se utiliza de um sinistro culto de cegos chamados de “Ciclopes”, para capturar as crianças. Em troca de lhes devolver a visão, os recém iniciados no culto recebem um “terceiro olho” mecanizado (chamado “Optacon”) e um aparelho que torna a audição supersensível (o que é tanto uma habilidade quanto um defeito, pois é possível ver o desconforto dos Ciclopes ao escutar alguém mastigando a comida).
Infelizmente para Krank, o plano falha, pois a experiencia de ser sequestrada e intimidada pelo ameaçador cientista, se mostra tão traumática que as crianças passam a ter apenas pesadelos.
Um dos pequeninos raptados por Krank é o esfomeado Denree (Joseph Lucien), irmão adotivo do simplório mas bem intencionado One, homem forte circense (Ron Perlman) que o resgatou de uma lata de lixo. Ao procurar pelo irmãozinho, One topa com uma gangue de crianças que roubam para alguém chamado “Polvo” (na realidade as gêmeas siamesas que regem a escola de ladrões). One é um gigante de bom coração, e acaba ajudado em sua busca pelo irmão, por Miette (“migalha”, interpretada por Judith Vittet), uma ladra de nove anos, mas com uma inteligência muito a frente de sua idade. Juntos, One, o homem forte, e Miette, a garotinha, saem para resgatar as crianças perdidas (apesar de que ‘roubadas’ seria mais apropriado).
One e Miette planejam se infiltrar na fortaleza de Krank (uma plataforma petrolífera no mar); distrair seus seis capangas clones (todos interpretados pelo sempre ótimo Domique Pinon), a diminuta e mortal Miss Bismuth (Mireille Mosse), Tio Irvin, o cérebro falante (voz de Jean-Louis Trintignant), e o próprio cientista; e resgatar Denree. O que se prova ser uma tarefa mais difícil do que parecia.
Enquanto muito de La Cité des enfants perdus seja surreal e estranho, o centro emocional do filme, o relacionamento entre One e Miette, é nutrido com carinho e sentimentos genuíno. Miette vê em One e Denree uma chance para a família que nunca conheceu, apesar de que, em certos momentos suas intenções em relação ao mais velho, ainda que infantil, chegam a parecer mais românticas que fraternais. Mas o credito de Jeunet e Caro é conseguir apresentar a ambiguidade dessa relação ternamente, sem injetar ao menos um traço perverso ou sórdido.
Enquanto o filme posterior de Jeunet, O Fabuloso Destino De Amélie Poulain, se encaixa confortavelmente no gênero de romance, La Cité des enfants perdus se encaixa mais em um gênero parte conto de fadas, parte romance de Charles Dickens em uma viagem de cogumelos e parte filme no estilo do Terry Gillian, o que torna um pouco difícil de se classificar com exatidão em uma crítica. O filme vacila entre o bizarro e o doce, e mesmo que cada cena pareça mais surreal que a anterior, tudo se harmoniza como uma perfeita costura, com direito a figurinos de Jean-Paul Gautier, e musica dos créditos cantada por Marianne Faithful (tendo sido indicada a Palma de Ouro pelo trabalho).
Daniel Emilfork está maravilhosamente assustador como Krank. Careca, de faces encovadas e de expressão cruel, ele chega a lembrar Maxmillian Schreck quando caracterizado como Graf Orlok em Nosferatu; o excepcional Dominique Pinon, que protagonizou Delicatessen (e teve papéis em outros dois filmes de Jeunet), usa seus peculiares maneirismos faciais como efeito cômico, tornando os clones praticamente Os Seis Patetas. A jovem Judith Vittet mostra uma atuação impressionante ao retratar Miette, e Ron Perlman é claramente a escolha perfeita para o forte e silencioso One.
Em La Cité des enfants perdus, Jeunet e Caro, nos trouxeram mais um mundo sombrio onde a vida “normal” não existe mais. Cenários imaginativamente construídos dão uma saturação especial ao filme. O quadro funciona em parte por que os realizadores do filme tomaram o tempo e o esforço necessários para retratar o estranho lugar onde todos os perturbados personagens poderiam viver e se ambientar de forma adequada. Como Delicatessen, La Cité des enfants perdus é caracterizado pelo humor sombrio e destorcido, mas ainda é mais um conto fantastico do que uma comédia macabra.
Assistir a esse filme parece menos como simplesmente ver um filme e mais como reviver um sonho semi-esquecido da infância, e subitamente perceber que é de fato um filme existente e não um sonho como você pensava. Todos os elementos da história parecem levemente com idéias vindas de histórias de ninar levemente dopadas que nunca escutamos, mas que passam a sensação de serem conhecidas. Raramente um filme consegue atingir esse clima puro. É quase impossível assistir sem ter aquela profunda sensação de nostalgia, mesmo que, e deve provavelmente ser o caso, você nunca tenha assistido antes.
Portanto já passou a hora de remediar isso e caçar esse filme.
Por Karl
Este é um de meus filmes prediletos no gênero.
Cenografia impecável, fotografia magnífica, enredo delicioso.
Vale a pena ver!
Ótima matéria, Karl!