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Mais poderoso que uma locomotiva

Provavelmente a capa de gibi de super-heróis mais famosa de todos os tempos mostrava a imagem do protagonista daquela revista exibindo sua força ao levantar um carro com as mãos nuas, para espanto das pessoas que observavam a cena. Passados 60 anos daquela estréia no primeiro número de Action Comics, Superman repetiu a cena em uma edição do selo Elseworlds, mas desta vez com o toque de deslocamento temporal que caracteriza aquele projeto da DC Comics. Em A Nation Divided, lançada em 1999, o personagem aparece num campo de batalha da Guerra da Secessão, bandeira esfarrapada da União de um lado, dos Confederados do outro, erguendo sobre a cabeça um canhão do modelo empregado naquele conflito que marcou o século XIX.

Com roteiro do experiente Roger Stern e desenhos de Eduardo Barreto, aquela era apenas a primeira de uma série de homenagens e referências de uma revista que pode ser mais bem aproveitada por aqueles que gostam de histórias envolvendo as alternativas cronológicas que caracterizam o gênero steampunk. No Brasil, a revista foi publicada pela editora que mais trabalhou com o selo Elseworlds em nosso país – que havia sido anteriormente mal traduzido como Túnel do Tempo pela Abril – a Mythos, que lançou Superman – Uma nação dividida em seu formato econômico – pouco menor que o formato comics original – em 2001.

A história é praticamente uma versão em quadrinhos da chamada literatura epistolar, ou seja, daquela que é narrada por meio de cartas trocadas por seus personagens. Ela já abre com um exemplo desse recurso, quando vemos o jovem recruta nortista Atticus Kent escrever uma carta para seus pais, de Kansas, Josephus e Sarah – versão do século retrasado de nossos conhecidos Clark, Jonathan e Martha Kent.

Queridos pai e mãe, não sei quando terei condições de remeter esta carta, mas eu queria registrar meus pensamentos, antes que o tempo os apague. Tem sido uma longa marcha. Embora eu não me sinta cansado, ando ouvindo queixas de outros homens. Desconfio que amanhã entraremos em combate. Eu não queria enfrentar os rebeldes. Sei que é preciso, pra encerrar esta guerra e preservar a União. No entanto, o preço será alto demais. Nós já vimos o resultado de batalhas preliminares. Homens mutilados e tão enfaixados que não vêem nada. Como crianças, eles são levados pela mão.”

A correspondência continua, com o soldado relembrando a vez em que seus pais deram abrigo à família Johnson, um casal e seus três filhos, negros, que fugiam de um grupo de escravistas. Pelas reminiscências do rapaz, podemos perceber que não se cansar nos deslocamentos não é a única evidência do quanto ele é diferente das demais pessoas. Os três homens armados que perseguiam os fugitivos foram expulsos do Rancho Kent por pedras lançadas por Atticus, em uma uma demonstração de força no mínimo incomum. Obviamente, isso seria apenas um aperitivo do que estava pra vir nas próximas páginas.

A próxima anotação que ajuda a conduzir a narrativa foi tirada do diário de um dos mais importantes oficiais do exército do Norte, Ulysses S. Grant (1822 – 85).

22 de maio de 1863.

Hoje, nós sitiamos Vicksburg, mas receio que esta será uma longa e sangrenta campanha. Nossa infantaria foi reforçada por um grupo de voluntários do Kansas. Muitos destes jovens, alguns dos quais não passam de garotos, estão marchando para a morte. Contudo, não há opção. Se pretendermos dominar o Mississippi, Vicksburg tem de cair.”

Claro que o receio de Grant, ao contrário do que ocorreu em nossa linha do tempo, não se confirma, pois como já sabemos, entre os voluntários do Kansas há um Superman. Algo que fica claro para todos quando, para salvar seu companheiro de batalhão Jeremiah – curiosamente usaram aqui uma versão de Jimmy Olsen e não algum vizinho de Kent nos tempos pré-Metrópolis, como Pete Ross – Atticus é atingido por uma bala de canhão.

O que ocorre a seguir é descrito por Jeremiah em carta para seu único parente vivo, na qual ele faz referência a uma imagem da HQ que repete quase fielmente o desenho da capa:

Caro tio Ezra, toda a infantaria ficou atônita, tio. Eu nunca tinha visto um homem levar um tiro de canhão… e jamais esperava ver alguém sobreviver a isso! Mas Atticus não apenas se recuperou em segundos como ficou furioso! Antes que pudesse ser detido, ele saiu em disparada colina acima. E os tiros dos rebeldes só o deixaram ainda mais furioso! Tivemos de correr como coriscos pra chegar lá, mas Atticus escancarou as fileiras inimigas pra nós. De repente, quando Atticus ergueu um canhão, eu percebi que ele não precisaria de ajuda. Com um impulso Kent arremessou o canhão pelo céu! Dias depois, eu soube que ele cruzou toda a Vicksburg, até cair no meio do rio Mississippi!”

Desta forma, mais rápido que uma bala, vemos Atticus Kent apressar os rumos da Guerra Civil na forma de uma vitória arrasadora das forças da União. Após a tomada daquela cidade e da captura do general confederado John Cliford Pemberton (1814 – 81) ele e seu amigo Jeremiah são recebidos por dois oficiais nortistas: o já citado Grant e outro general, William Tecumseh Sherman (1820 – 1891). Os militares constatam o que àquela altura já está óbvio para os leitores: os Estados Unidos da América contam com uma poderosa arma secreta para vencer a rebelião dos separatistas do Sul.

A estréia de Kent neste papel se dá, segundo uma nova carta enviada aos pais, por volta do dia 10 de junho daquele ano de 1863. Usando um uniforme negro com uma faixa vermelha na cintura e empunhando o pavilhão listrado que simboliza aquele país, a arma secreta mostra que, como diz o bordão clássico, “é mais poderoso que uma locomotiva”. Ele surge em plena corrida para interceptar um trem dos Confederados. É então que, em meio à nova batalha, dois novos poderes se manifestam na interminável lista que caracteriza o personagem. Um é a visão de calor; o outro foi mencionado por Grant em uma carta ao presidente Abrahan Lincoln que chega a duvidar de seu oficial, conhecido por apreciar bebidas alcoólicas: “ele agora voa, Sr. Presidente! Não à mercê dos ventos, como um balão, mas livre e voluntariamente.”

 

Apesar da dúvida, Lincoln e um visitante da Casa Branca, o abolicionista Frederick Douglass (1818 – 1895), o mais importante líder negro da América, em seu tempo, têm a oportunidade de conferir a verdade daquela carta quando Atticus, agora promovido a sargento, chega em Washington para dar um recado de Sherman. Atlanta, a cidade Sulista que tanto trabalho deu aos homens da União para ser pacificada segundo a história que conhecemos, naquela realidade ficcional foi tomada dos rebelados sem o disparo de um tiro.

O clima de festa só é afetado por uma observação feita por Douglass que levantou uma questão raras vezes tratada nos quadrinhos de Superman. Com ar contrariado, ele comenta com o supersoldado: “Sargento, eu empenho minha vida no combate à escravidão. Enquanto meus irmãos são rotulados inferiores eu prego igualdade. Receio que sua mera existência possa fortalecer aqueles que nos degradam.” O pensador se referia, obviamente, à aparência caucasiana daquele ser que, como sabemos, é um alienígena. Infelizmente, a revista não aprofunda o assunto que poderia ter rendido bem mais e foi concluído com uma resposta de Superman e um elogio de Lincoln. Perdeu-se a chance de dar mais relevância a um tema que está totalmente ligado ao contexto daquela história e causa da guerra que serve de pano de fundo para a trama. Uma pena.

Neste ponto, a trama continua em um crescendo das façanhas de Kent, com aparições de mais personalidades históricas, de ambos os lados do front. Eduardo Barreto tem a oportunidade de desenhar oficiais como o nortista George Armstrong Custer (1839 – 76), que em carta à sua esposa demonstra sentir inveja daquele homem que de certa forma usurpou a glória que lhe era destinada naquele conflito, J. E. B. Stuart (1833 – 64) e Robert Edward Lee (1807 – 70), sulistas capturados diretamente de suas montarias pelo soldado –na verdade, a esta altura seu posto é de capitão – alado que passou a usar um uniforme de super-herói, com capa vermelha e a insígnia rubro-amarela do peito com as letras USA. Nas páginas centrais de A Nation Divided, Barreto ilustrou um belo quadro representando a batalha de Gettysburg deste universo cuja arte assinou e dedicou “to Joe”, certamente Joe Kubert, um quadrinista célebre por suas histórias que retrataram outro cenário bélico: a II Guerra Mundial.

Um ponto interessante do álbum é que nem a presença de Kent foi capaz de impedir verdadeiras chacinas cometidas na Guerra Civil, mesmo diminuindo drasticamente as baixas. O exemplo perfeito é a já citada batalha de Gettysburg. Na nossa realidade, historiadores divergem se as vítimas somadas chegam a 46 mil ou a 51 mil. Naquele mundo, a tragédia se limitou a menos de mil mortos. Mesmo assim, o conflito motivou nos dois universos aquele que certamente é a mais famosa peça de oratória de todos os tempos, o breve e enérgico discurso proferido por Abrahan Lincoln que ficou marcado pelas palavras “que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais pereça na terra”. Este trecho da HQ e um mais adiante, no qual Superman salva o presidente do atentado que em nossa linha do tempo foi fatal, virou um vídeo de quatro minutos disponível no YouTube. A trilha sonora é da Marcha Fúnebre que marcou a despedida do político americano.

A HQ se encaminhava para seu final, dentro do esperado no cenário montado, com a Guerra da Secessão encerrada anos antes do que aconteceu em nosso mundo, com um Abrahan Lincoln capaz de assumir um segundo mandato, com a nação novamente unida. Mas Roger Stern preparou uma reviravolta nas últimas páginas de sua trama, ocorrendo em 1865, no mesmo momento em que o agora major descobre sua verdadeira origem alienígena e o que de fato planejavam para ele seus pais biológicos, os kryptonianos Jor-El e Lara, vistos aqui com a mesma concepção criada por John Byrne na grande reformulação que Superman teve em meados da década de 80. Roteirista habilidoso, Stern guardou seu trunfo e conseguiu criar um interesse renovado por sua visão de um Superman em ambientação típica do gênero steampunk. Vale notar que, à exemplo do que ocorreu na aventura Elseworlds de Batman em cenário semelhante, e resenhada neste site, aqui também ocorre uma homenagem ao Cavaleiro Solitário. Basta prestar atenção no derradeiro uniforme utilizado por Atticus Kent, uma reprodução da vestimenta de Lone Ranger.

Por Romeu Martins

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4 Responses to “Mais poderoso que uma locomotiva”

  1. Opa, ficou mais que perfeito!

    Amplexos

  2. Ludimila says:

    Gostei de ler mais essa resenha ilustrada sobre uma edição da Elseworlds. Fiquei curiosa pra saber qual foi a resposta do Superman ao comentário de Douglass.

  3. Seu pedido é uma ordem, Ludimila.

    Resposta do Superman:

    “Se for o caso, estou disposto a confrontar tais homens e dizer que estão errados. Posso ser forte e capaz de voar, mas esses dons não me tornam superior ao senhor ou a ninguém mais.”

    E o elogio de Lincoln:

    “Sua humildade o dignifica, filho. Você é como um anjo, enviado pelo todo-poderoso para salvar a União.”

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