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O Capitão America

Outro tempo, outro mundo

 

Em 1941, Joe Simon e Jack Kirby criaram um personagem que, mais do que um novo super-herói, era a verdadeira encarnação policrômica de um conceito: os Estados Unidos lutando na Segunda Guerra Mundial. O conflito durou oficialmente de 1939 a 1945, mas para aquele país, ele começou de fato naquele mesmo ano em que Captain America #1 chegou às bancas. Essa ligação entre personagem e fato histórico era tão grande que ele desapareceu dos planos da editora – então chamada Timely Comics –  com o fim das movimentações das tropas na Europa e na Ásia e só voltou décadas mais tarde, quando a renovada Marvel Comics resolveu dar uma segunda chance aos super-heróis, que na década de 60 passaram a ser escritos por um tal de Stan Lee.

Mas e se ao invés de ser o representante ficcional de seu país no maior dos eventos bélicos o personagem tivesse surgido bem antes, durante outra guerra, aquela que forjou a identidade do país cujas cores enfeitam seu uniforme? Essa foi a proposta por trás da revista What if featuring Captain America #1, de 2005, na qual o escritor Tony Bedard e o desenhista Carmine Digiandomenico retiraram o protagonista de seu contexto para jogá-lo ao combate durante a Guerra da Secessão (1861-1865). Com isso, temos aqui um outro caso de anacronismo em cenário típico de histórias steampunk, a exemplo de quadrinhos feitos pela DC com as estrelas da casa Superman e Batman, já resenhados por aqui (links mais abaixo 😉 ).

Se na editora concorrente tais histórias foram planejadas como parte do selo Elseworlds – Túnel do Tempo, no Brasil –, a iniciativa da Marvel surgiu em uma retomada de um projeto semelhante chamado “What if” nos EUA e de “O que aconteceria se” por aqui. Originalmente, as HQs feitas naquele conceito apresentavam versões alternativas para acontecimentos importantes da cronologia de seus personagens. Por exemplo, “O que aconteceria se o Capitão América tivesse aceitado concorrer à Presidência dos EUA?”. Na reformulação dessa linha de histórias, promovida na metade da década, os pontos de divergência se ampliaram podendo variar no tempo, como neste caso, ou no espaço, como em HQs que imaginaram o Quarteto Fantástico como cosmonautas russos ou o Demolidor como um guerreiro do Japão feudal. Uma outra mudança que se apresenta surge na figura do narrador dessas novas tramas contadas no futuro do pretérito.

Originalmente, Vigia era o nome de Uatu, o alienígena cabeçudo que de seu posto de observação, na área azul da Lua, decifrava os acontecimentos possíveis nas vidas dos heróis Marvel. Agora, este é o nickname do adolescente Hector Espejo, autoproclamado “príncipe dos hackers” que com seu computador turbinado consegue acessar a Internet dos mundos alternativos. É o caso do site do jornal The New York Timespost por onde ele descobre a história do General América, maior herói daquele mundo paralelo. O personagem em questão aparentemente é o bisneto do verdadeiro protagonista da aventura, Stephen Rogers, o homem que veio a ganhar o título de Capitão América no século XIX. O Vigia passa a ler o histórico do herói do passado por meio de um documento histórico que aquele jornal resgatou, o diário do então cabo Rogers que começa a narrar os acontecimentos desta forma: “Agosto de 1863. Chegamos ao campo de Jayhawkers, na divisa Kansas-Missouri. Finalmente vou ver ação!”

Naquele lugar, o rapaz engaja-se no regimento conhecido como Redlegs – “Pernas Vermelhas”, na tradução literal publicada na revista Wizard Brasil #36, por onde a HQ saiu em nosso país, em setembro de 2006 –, denominação devida às chamativas botas rubras que aqueles soldados nortistas utilizavam, complementando o uniforme azul. O rapaz magricelo, que ganha um ar especialmente aparvalhado com a arte ligeiramente caricata de Digiandomenico, rapidamente passa a ser alvo das piadas dos veteranos por declarar sua fé quanto aos supostos ideais de liberdade e igualdade que estariam por trás da origem da guerra civil americana. Quem vem salvá-lo do deboche dos companheiros de armas é o líder daqueles homens: “Coronel Buck Barnes, comandante de campo do Regimento Pernas Vermelhas, conhecido por suas tropas leais como ‘Bucky’”. Pelo nome e pelo apelido, estaríamos diante da versão alternativa do jovem ajudante do Capitão, conforme o conhecemos das HQs ambientadas na II Guerra. Porém, o roteiro de Bedard guardaria para ele mais surpresas que apenas essa suposta inversão hierárquica.

De fato, a situação do cabo Rogers rapidamente começa a se complicar dali para a frente. A primeira missão que lhe cabe já é o suficiente para ele reveja a confiança que ele depositava no idealismo do exército da União: o massacre de toda a população civil, mulheres, velhos e crianças incluídos, da cidade de Osceola, acusada de colaborar com os Casacas-Cinzas, os soldados separatistas do Sul. A desilusão é tamanha que, ao final daquele dia, após ser furado por um forcado, alvejado pelo tiro de uma pistola .44 e arrastado durante horas por cavalos, ele faz um desabafo em uma cama que poderia se tornar seu proverbial leito de morte: “Depois do que vi hoje, eu nem me importo com que lado vai vencer. Azuis, cinzas… é tudo a mesma coisa. Todos vamos pro inferno quando isso acabar”.

Quem ouve aquelas palavras desesperançadas é uma singular tropa de voluntários, formada basicamente por soldados indígenas de várias etnias – cherokees, osages, delawares, quapaws e shawnees – e por pelo menos um negro, outra referência a um antigo parceiro de lutas do Steve Rogers que conhecemos. Neste cenário, na iminência de um novo desastre anunciado, é que ocorre a transformação do cabo magricelo na figura heróica que os leitores já esperavam desde o início. Ao contrário do que ocorre com o personagem tradicional, em “O que aconteceria se o Capitão América tivesse lutado na Guerra da Secessão”, o gatilho de tal transformação não se dá pela tecnologia. Saem o soro do supersoldado e os raios Vita da década de 40 para entrar em seu lugar uma solução mística na formação desta contraparte ambientada no século XIX.

Infelizmente, What if featuring Captain America #1 não é um álbum especial ou uma graphic novel. Trata-se de uma revista dentro do padrão normal de apenas 24 páginas de quadrinhos adotado pelo mercado americano. Isso é bem pouco para apresentar a origem reformulada da Sentinela da Liberdade e de seu principal algoz e ainda dar uma ideia de como poderiam se desenvolver suas histórias a partir dali. As últimas duas páginas, por exemplo, apresentam um resumo do que o hacker Vigia encontrou naquele site de “uma realidade quântica separada”: sobre as movimentações do já nomeado Capitão América nos anos finais da guerra, sobre como ele poupou milhares de vidas com suas ações, evitando entre outras coisas o incêndio de Atlanta e o assassinato de Abrahan Lincoln, e de como ele talvez tenha dado a uma linhagem heróica, a exemplo do Fantasma, de Lee Falk. Ou seria ele, na verdade, um personagem imortal, disfarçando sua longevidade com esses alegados descendentes? Só descobriríamos ao certo se esta HQ algum dia ganhar alguma continuidade, o que seria bastante interessante.

Por Romeu Martins

Mais Poderoso que uma locomotiva

O Azul, o Cinza e o Morcego

 

4 Responses to “O Capitão America”

  1. […] This post was mentioned on Twitter by Steampunksp, Cândido Ruiz. Cândido Ruiz said: RT @Steampunksp: Outro tempo, outro mundo http://sp.steampunk.com.br/2010/07/20/o-capitao-america/ […]

  2. o Clérigo says:

    Interessantíssima esta matéria. Nunca tinha ouvido falar dessa versão steampunk do Capitão. “O que aconteceria se” eles dessem continuidade à série??

  3. Eu adoraria ver alguém mostrar isso, por exemplo, numa minissérie no site http://www.hyperfan.com.br 😉

  4. Curti muito esse Capitão.
    Tanto que fiz alguns vetores dele e de outros personagens Marvel e DC nesse mesmo cenário:
    http://joaonorberto.deviantart.com/gallery/31831587

    Esse é um dos What if que eu mais gostei.

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