Brasiliana Steampunk: A lição de anatomia do temível Dr. Louison
Confrades o Conselho Steampunk divulga a capa de “A lição de anatomia do temível Dr. Louison”, primeiro volume de Brasiliana Steampunk, série que reinterpreta os grandes heróis da literatura brasileira do final do século 19 num cenário retrofuturista. O lançamento ocorreu no dia 30/08 no estande da Editora Leya. A Loja São Paulo esteve presente no evento e agora apresentamos aqui a capa da obra e uma entrevista com o autor.
Enéias Tavares é professor e pesquisador na Universidade Federal de Santa Maria. Nas horas vagas, escreve a série retrofuturista BRASILIANA STEAMPUNK, cujo primeiro volume, “A lição de anatomia do temível Dr. Louison” acaba de ser publicado pela LeYa, como prêmio pelo concurso “A Fantasy quer o seu mundo”, da Casa da Palavra. A vitória de um romance steampunk com personagens nacionais e com uma “brasileiridade” tão peculiar apenas alegra aos entusiastas por ficção científica, fantasia e horror, e ainda mais aos amantes do “vapor marginal”.
Esta entrevista foi iniciada na II SteamCon de Paranapiacaba, na qual Enéias foi divulgar não apenas a série como apresentar o seu “Manifesto Brasiliana Steampunk”. Este, que publicaremos no futuro com exclusividade, em breve ganhará uma versão em vídeo, com direção de Camila Vermelho. Como perceberão, BRASILIANA STEAMPUNK é muito mais do que uma série literária. Trata-se de um projeto multimídia que objetiva movimentar as engrenagens da literatura fantástica nacional. Vejamos como Tavares pretende fazer isso.
Entrevista com o autor:
Conte-nos sobre sua relação com literatura e em particular com a literatura fantástica.
Sou filho único e posso dizer que boa parte da minha infância foi desperdiçada dentro de um quarto brincando com soldadinhos articulados, papel e lápis de cor, caixas de Maizena transformadas em inacreditáveis batmóveis, além das pilhas de revistas em quadrinhos que eu economizava da mesada para comprar. Foi partindo dessa experiência que fiz a ponte para a literatura, primeiramente a literatura popular e depois os autores clássicos. Minha formação em Letras, meu mestrado em Shakespeare e o doutorado em Blake, além do próprio trabalho como professor de literatura, acabaram por ampliar meu repertório. Mas tirando as leituras clássicas e essencialmente acadêmicas, sempre me vi retornando a Tolkien, Anne Rice e Alan Moore, de longe meus autores prediletos. Como autor, fale a respeito do cenário brasileiro de literatura fantástica e como professor, das lições que podemos aprender da literatura steampunk nacional. Como autor principiante, posso afirmar que estamos vivendo um momento privilegiado. Temos várias editoras investindo na literatura fantástica e atentas à importância de um público leitor jovem. O concurso da Casa da Palavra e o próprio selo Fantasy atestam isso. Além de obras de fantasia como “O Espachim de carvão”, de Affonso Solano, “O Código Élfico”, de Leonel Caldela, e “O Inverno das Fadas”, de Carolina Munhóz, posso citar diversas publicações nacionais cuja temática é declaradamente steampunk. Temos as coletâneas “Steampunk” (2009) e “Retrofuturismo” (2013) da editora Tarja e os dois volumes de “Vaporpunk” (2010 e 2014) pela Draco, que publicou também os romances “O Baronato de Shoah” (2011), de José Roberto Vieira, e “Homens e Monstros” (2013), de Flávio Medeiros Jr., além de outras coletâneas de temáticas similares, como “Steampink” (2012), da Estronho, apenas com textos de autoria feminina e o romance de André Cordenonzi, “Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes” (2012), da editora Underworld, além da coletânea “Dystopia” (2013), organizada por Cândido Ruiz, e do projeto multimídia de Bruno Accioly, “Crônicas Póstumas”, que faz uma releitura ousada e divertidíssima dos heróis de Machado. Quanto à segunda parte da pergunta, ainda não sei se podemos aprender lições, uma vez que essas publicações são recentes e algumas carecem da visibilidade que merecem. Falamos aqui de autores interessados em produzir uma literatura vívida, apaixonada e enérgica, e penso que seja justamente isso o que jovens leitores querem ver e ler. Não acho que a nossa literatura tradicional não o seja – o “Cortiço”, que é, em minha opinião, o nosso maior romance, está cheio dessas qualidades. Vejo que o principal problema talvez esteja na forma como ensinamos literatura a crianças e adolescentes, menos como arte, menos como estórias sobre paixão, aventuras, batalhas e descobertas acima de tudo humanas, e mais como meros depositórios de fatos históricos, características de escolas de época ou registros pseudo-biográficos. Não tenho dúvidas de que estamos vendo o surgimento de um público leitor jovem entusiasta e interessado, e sem dúvida isso é um reflexo das diversas séries fantásticas que hoje encontramos nas livrarias.
A literatura steampunk ao redor do mundo tem demonstrado uma grande influência da “história alternativa” e uma vocação para nos recordar de quem somos. Você acredita que este seja o principal elemento destas obras?
Sim e não. Positivamente, penso que a referência a fatos, personagens ou artefatos históricos promova um interesse por parte do público. Retomando Aristóteles, “literatura não é sobre o que aconteceu e sim sobre o que poderia ter acontecido”. Deste ponto de vista, não há diferença alguma entre os grandes clássicos e a ficção baseada numa “história alternativa”. Por outro lado, penso que a literatura trata do que poderia ter ocorrido justamente para evidenciar verdades que seríamos incapazes de perceber de outro modo. “1984”, por exemplo, de George Orwell, é ficção científica e ao mesmo tempo é o grande alerta que poderíamos ter a respeito dos regimes autoritários e repressores na segunda metade do século 20. Poderíamos falar o mesmo sobre artefatos culturais diversos, de filmes como “Blade Runner” a narrativas gráficas como “Watchmen”. Ambos nos fazem pensar sobre o mundo que estamos criando para nós e para as gerações seguintes. Será que queremos replicantes mais sensíveis que nós mesmos ou será que arruinaremos tudo num grande conflito atômico? No caso da ficção steampunk, temos um exemplo ainda mais interessante. Ela se apresenta como uma estética retrofuturista, vitoriana ou, no máximo, eduardina, cuja tecnologia “steam” avançou bem mais do que a nossa, calcada na “eletricidade” e depois na “informática”. Entretanto, trata-se de uma ficção que nos faz repensar nossa relação com o capitalismo, com as máquinas, com os seres humanos que estão ao nosso redor, tão perto e ao mesmo tempo tão longe. O que muda, por exemplo, quando deixamos de escrever cartas para escrever mensagens? Quando substituímos nossos escravos humanos por escravos robóticos? Quando criamos tecnologias que nos são benéficas enquanto facilitadoras de bens e serviços e ao mesmo tempo malignas uma vez que não conseguimos mais viver sem elas? A dimensão “Do It Yourself” da estética steampunk me alegra e muito, pois nos incentiva a repensar nossas roupas, nossas ferramentas, nossa relação com o mundo e com os outros. O que vejo como fantástico nessa relação é que se trata de um tipo de ficção científica que está fazendo jovens e adultos, homens e mulheres, evitarem uma postura passiva, repensando não apenas o que querem do seu visual como também o que querem do seu mundo. Por fim, trata-se de um visual super cool e sexy, o que, em minha opinião, é sempre bem vindo.
Notei que muitos nomes e alcunhas dentro do seu romance remetem a diferentes figuras históricas dentro e fora da literatura. Quais são elas? Por que os escolheu e quais os autores que influenciaram seu trabalho?
No universo de Brasiliana Steampunk, a abolição da escravidão ocorreu dez anos antes, em 1878, mais por razões econômicas do que humanistas, o que não é muito diferente da nossa própria história. Todavia, neste cenário a mão de obra negra e indígena foi substituída pela robótica, o que fez seus habitantes se comunicarem de forma completamente diversa com as máquinas. Então, sim, temos personagens históricas como Princesa Izabel, entre outras, que são brevemente citadas em certas passagens do romance. Porém, meu exercício imaginativo esteve mais centrado nas figuras literárias do que nas históricas, o que aproxima BRASILIANA STEAMPUNK de obras como a “Liga Extraordinária” de Alan Moore, “Anno Drácula”, de Kim Newman e da recente – e genial – série televisiva “Penny Dreadful”. Nesse sentido, o que desejei foi desenhar uma cartografia da literatura brasileira. Como professor de Literatura, tenho percebido certo cansaço orbitar os grandes romances da nossa tradição. E falo tanto de professores como também de alunos, que acabam lendo apenas por obrigação escolar, o que é sempre frustrante e traumático. Por outro lado, temos personagens muito atuais, como Simão Bacamarte, Rita Baiana, Sergio do “Ateneu”, Doutor Benignus, Vitória Acauã, alguns conhecidos, outros soterrados pela crítica acadêmica. Meu alvo com este projeto é arejar os calabouços nos quais muitos desses personagens foram sepultados e trazê-los de volta revigorados, reinterpretados a partir da sua energia original. O segundo elemento é a intenção de criar uma história que, mesmo tendo um caráter enciclopédico, fosse vibrante, divertida, interessante, uma história que abraçasse seu aspecto popular e folhetinesco. Infelizmente, parece que esquecemos – e aqui remeto mais a professores e especialistas do que aos escritores – de que os grandes autores publicaram inicialmente nas populares páginas dos jornais, em formatos seriados e novelescos, apelando ao que havia de mais comunicável a fim de tanto atingir o leitor quanto de receber do editor a encomenda de entregar o final da história.
No primeiro volume da série Brasiliana Steampunk, vocês nos apresenta ao “monstruoso pederasta”, “terrível Diabo”, “Mefistófeles tupiniquim”, “assombrosa perversão da natureza”, “maníaco estripador”, “psicótico pusilânime”, “celerado irascível”, “depravado hediondo” e “alcaide infernal”, o terrível Dr. Louison. Quem é essa criatura inteligente e selvagem?
Louison parte do arquétipo de monstro vitoriano por excelência. Ele possui uma capa e uma cartola, além de uma bengala que esconde lâminas, venenos e outras substâncias ilícitas que poderiam muito bem ter sido usada por Drácula, Jack o Estripador, Dorian Gray, Dr. Jekyll ou Sr. Hyde, ou qualquer outra entidade monstruosa e perversa do período. Por outro lado, queria jogar nesse estereótipo vilanesco uma história de paixão e vingança que, não justificando seus “assassinatos em série”, pudesse lhe dar tons de profundidade e complexidade, além de beleza e poesia. Sou um grande entusiasta do Satã de Milton, sobretudo pela capacidade daquele herói em nos conquistar com sua charmosa e maligna potência retórica. Nesse sentido, acho que os leitores do romance adentrarão neste mundo a partir das impressões acima descritas, impressões que são ouvidas e registradas por Isaías Caminha quando chega à capital gaúcha em julho de 1911. Todavia, como Caminha, espero que os leitores percebam que as definições e as separações entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o heroico e criminoso, não são tão definidas assim neste universo. Em resumo, queria um monstro que fosse sensível, poético, intenso, um monstro que pudesse ser ferido e magoado, machucado e tocado, e que, ao mesmo tempo, tivesse a humana capacidade de renascer de seus próprios tormentos. Espero que o “Temível Dr. Louison” corresponda a essa intenção.
A narrativa nos apresenta(ou reapresenta) um “mestiço” que causa uma inquietante estranheza aos olhos dos autômatos e é reconhecido como fora do “padrão”. Quem é este indivíduo tão “brasiliano” com quem facilmente podemos nos identificar? E por que essas criaturas de olhos mecânicos que enxergam o mundo por uma ótica matemática não podem compreender sua figura?
O romance tem mais de catorze personagens importantes, que são de um modo ou outro fundamentais à trama. Porém, para adentrar neste mundo, eu precisava de um neófito, de um personagem que fosse nosso olhar dentro do romance, que visitasse pela primeira vez os seus cenários e que nos ajudasse a conhecer o Asilo São Pedro, a Mansão dos Encantos, o Palacete dos Prazeres. Este herói é Isaías Caminha, que chega de Zepelin à capital de Porto Alegre dos Amantes. É a partir de sua perspectiva que acessamos esse mundo, sendo que uma de suas primeiras impressões é justamente a das segregações sociais de tal sociedade. Caminha é mulato e esta é uma das grandes questões levantadas por Lima Barreto em seu romance. Como as máquinas possuem uma programação lógica, e, por definição, limitada a um determinado número de variações, elas tem dificuldade em perceber algo que esteja entre etnias preestabelecidas. Simão Bacamarte, que é um porta-voz das absurdas e pérfidas teorias raciais europeias, é outro personagem que tem dificuldade em aceitar o “mestiço” que se veste como um dândi. E Caminha não é o único personagem a produzir essas impressões. Como minha idéia foi revisitar a tradição, não poderia ignorar outra famosa mulata de nossa literatura, Rita Baiana, e Vitória Acauã, a “femme fatale” indígena do romance, que fala com os mortos e é uma das responsáveis por apresentar Caminha ao Parthenon Místico, sociedade secreta que luta contra a Ordem Positivista e que se reúne na Ilha do Desencanto. No enredo do romance, é esta sociedade secreta, composta pelo imortal satânista Soulfieri de Azevedo e os aventureiros do oculto Sergio e Bento Alves, que tentará libertar Louison do hospício. Para retomar sua pergunta, desde o início eu queria mesclar elementos fantásticos a problemas de ordem social que considero relevantes. Uma das personagens inéditas do romance se chama Beatriz de Almeida & Souza e deseja ser uma escritora, o que é um problema sendo mulher e sendo negra. Acharia impossível ambientar o enredo do romance no Brasil sem tocar nesses e outros tópicos. E é justamente a interposição desses vários fatores que definiu o título da série. “Brasiliana” porque desejava algo que se passasse em nossos cenários, com ruas, cores, cheiros, numa miscelânea de sensações que nos fossem reconhecíveis e, acima de tudo, atraentes. Eu espero que o público, indiferente de gênero, raça, posição social ou orientação, se encontre nos heróis de BRASILIANA STEAMPUNK.
Além de outros romances, o que leitor pode esperar nos meses a frente, como expansão do universo de Brasiliana Steampunk?
Planejo um guia de referências e alguns contos inéditos que dialogarão com eventos mencionados nos romances. Quanto ao Guia/Almanaque, será produzido em parceria com outros escritores e ilustradores e apresentará uma série de referências ao universo apresentado em “Lição de Anatomia”. Penso numa coletânea de textos, cartas, mapas, linhas de tempo, peças visuais, pastiches de reportagens de jornal, recados psicografados, anúncios de época, diagramas, poemetos, um baralho de tarô, entre outras coisas esquisitas, num formato “livro de Cenário de RPG”. Ainda não há nada certo sobre a publicação, mas muitos desses elementos iconográficos estarão disponíveis no site do projeto, que lançaremos entre outubro e novembro deste ano. Entre os artistas que estão trabalhando conosco, destaco Jéssica Lang, que fez fichas de personagens e cenários, Diego Cunha, que está trabalhando em dois pastiches de pinturas de Rembrandt, e Marcus Lorenzet que está criando os arcanos maiores. Além disso, estamos contando com a orientação de Affonso Solano, Bruno Accioly e do próprio Cândido Ruiz, que assinará comigo os textos do tarot. Com respeito aos contos inéditos, destaco o primeiro que se passa em 1896 e que mostra a sociedade secreta do Parthenon enfrentando a Ordem Positivista para libertar a jovem Vitória Acauã. O protagonista é Bento Alves, esse Indiana Jones tupiniquim, que escreve ao amigo Sergio Pompeu. Há um segundo conto para uma coletânea que sairá ano que vem pela Editora Argonautas, organizada por Duda Falcão e André Cordenonsi, que trata de Vitória Acauã, agora uma pesquisadora do oculto em 1904, auxiliando num caso de exorcismo. É um conto de horror religioso e psicológico, pois o conflito está em saber se a criança está possuída ou se sofre de uma doença mental. O conto dialoga com o início da psicanálise e com a proliferação de sociedades secretas no início do século 20. Por fim, há um conto para Bang Literário! que narra a origem da Luneta Mágica utilizada por Louison em “Lição de Anatomia”, fazendo referência ao romance de Joaquim Manuel de Macedo e ao “Ateneu”, de Raul Pompéia, uma vez que Sergio é narrador. Esses e outros contos aprofundam o cenário, expandem o enredo, detalham acontecimentos citados e reforçam a tapeçaria histórica, literária e ficcional apresentada no primeiro volume da série. Como podes notar, estamos trabalhando para dar ao leitor uma experiência literária com o maior nível de complexidade. E o fato de muitos desses conteúdos serem disponibilizados no site do projeto de forma gratuita nos alegra bastante.
Para terminar, defina o Steampunk em uma frase.
Ficção popular produzida no presente, vislumbrando um passado tecnológico que poderia ter sido, porém mirando num futuro que (não) queremos que seja.
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Por Cândido Ruiz
[…] Tavares Autor de A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison (Casa da Palavra/LeYa, 2014). Professor de Literatura na UFSM e diretor do Centro de Pesquisas […]
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